‘Ser quilombola é falar com os ancestrais': conheça o Quilombo da Pedra Bonita, na Floresta da Tijuca desde antes da abolição

  • 20/11/2025
(Foto: Reprodução)
Quilombo da Pedra Bonita, na Floresta da Tijuca, resiste desde antes da abolição No coração da Floresta da Tijuca, uma das maiores florestas urbanas do mundo, grupos quilombolas resistem há mais de um século e meio. Entre eles está o Quilombo da Pedra Bonita, considerado um dos mais antigos do Rio de Janeiro: as primeiras famílias chegaram ao local por volta de 1860, antes mesmo da abolição da escravidão. Grande parte da história não foi registrada em documentos da época, mas permanece na oralidade. Na semana do Dia Consciência Negra, celebrado nesta quinta-feira (23), remanescentes do quilombo contaram ao g1 parte dessa memória. Ruínas, árvores sagradas e acervo histórico Mapa da floresta da Tijuca e onde fica o quilombo Arte g1 José Emílio, nativo da Pedra Bonita e vice-presidente da Associação Estadual das Comunidades Quilombolas (Acquilerj), explica que a luta principal dos quilombolas é pela preservação da natureza e da "riqueza histórica dos territórios". Entre a vegetação da Mata Atlântica estão ruínas atribuídas ao Escravo Veríssio, que fugiu dos colonizadores e se refugiou no Sítio Monte Zumba. Segundo os moradores, ele construiu a própria casa carregando pedras por cerca de 300 metros do rio até a floresta acima. A construção teria sido erguida no fim do século 19. “A gente nem sabe quanto tempo ele levou, mas construiu, e depois que morreu a floresta invadiu e foi virando ruína”, conta Sérgio Ricardo da Costa. Na entrada da antiga casa, duas paineiras enormes serviam como proteção. Hoje, são consideradas árvores sagradas — assim como outras espécies da floresta, seja pelo simbolismo espiritual, seja pelo valor histórico, como as camélias associadas ao movimento abolicionista. Ruínas da casa do Escravo Veríssio Stephanie Rodrigues/g1 O ciclo do carvão e o reflorestamento Pesquisas do Laboratório de Biogeografia e Ecologia Histórica da PUC-Rio apontam a existência de mais de 1,5 mil áreas de produção de carvão na Mata Atlântica carioca. Na Floresta da Tijuca, os ex-escravizados usavam o balão de carvão, que é um cone de lenha empilhada e revestido de barro, atingindo cerca de 6 metros de circunferência e aproximadamente 3,5 metros de altura, onde eles colocavam fogo na lenha para a produção do carvão. Pesquisas do Laboratório de Biogeografia e Ecologia Histórica da PUC-Rio identificam mais de 1,5 mil pontos de produção de carvão na Mata Atlântica carioca. Na Floresta da Tijuca, ex-escravizados usavam os chamados “balões de carvão” — cones de lenha revestidos de barro, de até 3,5 metros de altura — que exigiam vigilância contínua por mais de 24 horas. Maerial secular que ainda existe nos extintos balões de carvão Stephanie Rodrigues/g1 “Se a fumaça saísse de outra cor, tinha que colocar mais lenha para não queimar o carvão. Então, pensa como era cansativo”, conta Sérgio. O carvão movia a economia da cidade e era fonte de renda para as famílias refugiadas na floresta. Segundo José Emílio, o avô trabalhou com carvão até 1910, quando a atividade passou a ser alvo de críticas ambientais e a família migrou para a agricultura. ‘A floresta aflorou’: preservação como valor ancestral Pintura mostra a casa do ancestral Emigdio Arquivo pessoal A agricultura ajudou no processo de reflorestamento, reduzindo a erosão. Registros e pinturas antigas mostram que boa parte da floresta ainda não tinha se regenerado completamente no início do século 20. Em uma delas, aparece a casa do avô de José, o Emigdio (veja acima). “Então, a floresta aflorou, cresceu, e esse é o nosso maior valor. Não só do território quilombola da Pedra Bonita, mas de todos os territórios quilombolas. Essa preservação da natureza é um conhecimento ancestral, vem para nós até pela espiritualidade. Todas essas árvores aqui foram plantadas pelos nossos familiares”, diz José Emílio. Além da proteção ambiental, eles lutam para manter o horário restrito de visitação do parque (8h às 17h), considerado essencial para preservar o ciclo de animais noturnos. "Isso faz parte da nossa conexão com a natureza”, afirma. Território formado antes da Lei Áurea A área do quilombo corresponde ao Setor C do Parque Nacional da Floresta da Tijuca e reúne diferentes núcleos: o Sítio Monte Zumba, o Sítio do Meio e a parte alta, onde também viviam várias famílias. Na parte alta, funcionava uma Casa Grande, onde brancos abolicionistas acolhiam pessoas escravizadas que buscavam refúgio. A primeira ancestral de José Emílio a se instalar na região foi Virgínia Maria do Espírito Santo, junto com um indígena, com quem se casou depois e teve os filhos. “A casa grande funcionava como uma receptação para as famílias que chegavam na Pedra Bonita e depois construíam suas casas, que eram de barro de estuque. Até hoje a gente sabe fazer essas construções”, conta José Emílio. A Lei Áurea só seria assinada décadas depois da formação da comunidade. Casa construída no quilombo da Pedra Bonita Arquivo pessoal Reconhecimento e luta por serviços básicos Moradores lembram tentativas de invasão para construção de moradias irregulares e a precariedade no acesso a serviços públicos. “Até os 12 anos a gente não conhecia médico, só ervas”, diz. “Se a gente não existisse aqui, isso aqui seria um um monte uma comunidade, uma comunidade igual a Rocinha", conta Sérgio. A Defensoria Pública do Rio acompanha a comunidade por meio do Núcleo de Combate ao Racismo (Nucora) e participa de oficinas com o ICMBio para regulamentar o uso do parque. A defensora Luciana da Mota afirma que o reconhecimento quilombola é uma obrigação constitucional e ressalta a necessidade de serviços como energia elétrica segura, água potável, saúde e para-raios. Segundo o Censo 2022 do IBGE, o Brasil tem 1,33 milhão de quilombolas em 1,7 mil municípios. No Rio, são mais de 20 mil — e a capital é a 3ª cidade com maior população quilombola do país. Ruína da Casa Grande onde vivia o Conde de Montezuma Arquivo pessoal “Aqui na Pedra Bonita, especificamente, a gente vem participando de oficinas que são promovidas pelo Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) para regulamentar o uso do parque, porque grande parte aqui é ocupada por comunidades quilombolas”, explica a defensora pública Luciana da Mota, lembrando que, além de importante, o reconhecimento dos quilombos é uma imposição constitucional. LEIA TAMBÉM: Quilombo Sacopã resiste há mais de 100 anos em meio a prédios e mansões na Lagoa Um rio que carrega uma história familiar Mapa mostra o rio Emídio Arquivo pessoal Nos registros do parque há o Rio Emídio (ou Rio do Emídio), de pouco mais de um quilômetro. O que quase ninguém sabe é que o nome homenageia o irmão de José Emílio, diagnosticado hoje como autista. “Nosso irmãozinho não falava e sempre fugia para uma área de bananal onde tinha umas bacias de pedra onde ele gostava de se banhar ali”, relembra, emocionado. Sem compreender sua condição, a família temia suas fugas até a estrada usada por praticantes de voo livre e o internou em uma clínica psiquiátrica — onde ele sofreu agressões e morreu. “Quando o esporte do voo livre veio pra cá, as pessoas subiam de carro, e ele fugia para os carros em vez do bananal. Nossa família ficou com medo e orientaram que nosso irmãozinho fosse internado em uma clínica de doentes mentais onde se levava choque. Ele foi passado para uma área onde só tinha adultos e bateram muito nele, acabou que ele veio a falecer nessa clínica depois de muitas atrocidades. Até arrancaram a orelha dele”, conta. O pai escreveu “Fonte Emídio” nas rochas próximas à área onde o filho costumava brincar. Anos depois, ao oficializar o parque, o nome foi registrado nos mapas. Homenagem feita pelo pai ao filho Emídio Arquivo pessoal “O pai escreveu numa dessas banheiras o nome Emídio, que era o nome do nosso avô e do meu irmãozinho. Ele escreveu Emídio porque ali era a referência para onde ele sempre fugia”. Anos depois, com a legislação do parque, que só passou a ser reconhecido por lei em 1961, foi registrado o rio com o nome do irmão de José Emílio. “Essa história e esse vínculo é nosso. Na época, a legislação sequer reconhecia a nossa existência, mas registraram uma história nossa sem saber”, completa ele. Estrada construída de cima pra baixo Estrada da Pedra Bonita Arquivo pessoal A Estrada da Pedra Bonita começou a ser aberta nos anos 1970 com ajuda dos quilombolas. A via foi feita “de cima para baixo” para evitar bloqueios e permitir acesso à comunidade, que vivia isolada. Em 1974, começou a se praticar o esporte de voo livre no local. “A estrada foi construída por nós mesmos junto com os forasteiros que queriam se sobrepor nesse território, mas para nós era uma evolução. A gente construiu de cima pra baixo para não ter obstrução de algum órgão e a gente poder ter acesso. Foi a nossa conexão com a modernidade, com carros, com tudo que vocês acham normal”, afirma José Emílio. Cristino da Silva Fonseca, hoje com 74 anos, chegou ao local aos 5 anos. Ele lembra da infância trabalhando na lavoura e carregando animais para levar a produção até a cidade. Foi o primeiro da família dele a estudar fora — enfrentando 1h30 de caminhada por trilhas na floresta para chegar à escola. Trabalhou na plantação até os 20 anos, mas depois conseguiu emprego fora do quilombo. “Eu chegava em casa tarde depois da aula para no outro dia 6h já estar levantando para trabalhar” , conta. Seu Cristino e José Emílio Stephanie Rodrigues/g1 ‘Quilombo é a conexão com a ancestralidade’ O reconhecimento oficial como povo quilombola pela União veio em 2003, cerca de 140 anos após a chegada das primeiras famílias. “É emocionante, porque ao longo do tempo a gente não era sequer reconhecido como seres humanos. Tinham muitos ataques, destruíam nossas plantações, nossos familiares morriam por doenças sem remédio, tinha falta de serviços essenciais. Com a certificação e o conhecimento de nossos direitos, isso vem nos auxiliando na defesa do nosso território”, afirma José Emílio. Quilombolas contra derrubada de árvores Arquivo pessoal Ele lembra a derrubada de um cedro vermelho considerado sagrado para a construção do estacionamento da rampa de voo livre — ação contestada pelos moradores. José voltou a estudar e cursa História para fortalecer a luta da comunidade. “Ser quilombola é falar com os ancestrais, ter essa conexão com a ancestralidade, é respeitar o saber ancestral. A gente sente essa energia.” Pertencimento e cultura Maria da Paz Silva Fonseca Stephanie Rodrigues/g1 Maria da Paz, irmã caçula de Cristino, conta que só compreendeu o significado do quilombo depois de adulta. Hoje, quando visita a Pedra Bonita, diz se sentir “em casa”. "Eu não sabia nada sobre a história dos quilombos", lembra. A comunidade mantém tradições e produz artesanato e alimentos naturais. Carla Trajano, esposa de José, prepara bolos com ora-pro-nóbis e limão, licores de frutas locais e pimentas em conserva. É dela, com José Emílio, a autoria da música "Os Filhos da Terra" (veja a letra abaixo), que resume o sentimento de conexão com o território e com a ancestralidade. 'Os Filhos da Terra' Conheça música 'Os filhos da terra', do quilombo Pedra Bonita, da Floresta da Tijuca Meus pés sobre essa terra Me traz os ancestrais Sempre me dizendo pra onde sigo O que plantarei? A força que me rege Sempre teve a sua escala O tempo ensina o viver Que aprendemos nas senzalas Caboclo da terra santa Por quê estou aqui? Tenho uma vida acadêmica, Um caminho a seguir! A terra grita aos seus filhos E os filhos escutam o Pai Ô Pai Santo, me acalenta a alma Eu tenho um choro ancestral A família não entende o meu caminho Caminho que não escolhi Quilombolas, indígenas, ribeirinhas Por quê tem que ser assim? Insistência, caminhos fortes pelos veios da África Resistência da miscigenação A luta é na prática! Embranquiçar pra sobreviver Esquecer o tutu com feijão Fazer uma feijoada Pra servir o barão! Ô Ô Ô Pai Santo, qual deve ser a religião? Se Tu és Pai Único, por quê a miscigenação? Vamos contar a nossa história, mostrar nossas riquezas Viemos de reis e rainhas, não nascemos da pobreza O preto sabe sua dor, mas segue a sua escala Trazemos a sabedoria, Sabedoria das senzalas! Toda tribo tem um caminho Quilombolas , indíginas, ribeirinhas Precisamos sempre seguir! A resistência do nosso povo Está no horizonte, ao sol de lumes Estado do Rio de Janeiro ACQUILERJ Bia Nunes Honramos nos atos a força ancestral Desenhamos florestas em nossas passadas Miscigenamos cultura varonil No nosso rico país chamado Brasil Pedra Bonita, Rio de Janeiro Stephanie Rodrigues/g1

FONTE: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/11/20/conheca-o-quilombo-da-pedra-bonita-na-floresta-da-tijuca.ghtml


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